O encontro e a lembrança: o destempero da bem-aventurança
Na manhã do dia 11 de julho de 1975, o estudante Daniel Ávila, 21, estava estirado na cama espreitando o único e sorrateiro feixe de luz que lhe repelia. Catatônico há uma semana, nutriu angústia pela indesejável réstia. O estado de ostracismo era ingente. Acreditou ser aquela luz uma lâmina com o objetivo de ceifar-lhe a existência. Enquanto se aliava às trevas, lembranças que remontam o início de junho foram à tona.
No dia 3 daquele mês, Daniel descobriu que as emoções se transfiguram conforme as experiências de vida. Após algumas horas na Biblioteca Municipal Adolfo de Oliveira Freire, disperso entre Petrarca e Boccaccio, foi embora antes que o Sol cedesse espaço à Lua. Contrariou o pedido de sua mãe, a dona-de-casa Rosa Fassina Ávila, para aguardar que o pai, o produtor rural João Carlos Ávila, o buscasse às 20h. Com transeunte espírito aventureiro, o rapaz decidiu percorrer os 16 quilômetros a pé. Porém, precisaria pegar um atalho pela Ferrovia do Colono.
Quando iniciou o trajeto, o sol brilhava como um guerreiro insólito com a missão de sobrepujar o inverno, embora o frio fosse proeminente para Ávila que esfregava os braços cruzados contra o corpo, tentando amenizar os efeitos do vento gélido oriundo do leste. A ânsia de chegar ao lar foi imperiosa até às 17h40 quando o estudante percebeu, a alguns metros dali, um sujeito corpulento de 1,75m, cabelos ruivos ralos e crespos, e braços arqueados.
A princípio, não identificou se era jovem ou velho, mas ao se aproximar um pouco mais, uma voz em tom de zombaria, entrecortada com gargalhadas, remeteu Daniel a um passado até então sepultado – era Gilberto Costa de Souza. Para não ser visto, o estudante recostou o corpo contra uma figueira; cerrou os punhos e abaixou a cabeça. Os cabelos lisos, longos e negros esvoaçavam seguindo o ritmo cadenciado das folhas enquanto Ávila rangia os dentes. Sentiu tanto ódio que apertou o tronco da árvore com força descomunal; gotas de sangue embaixo das unhas respingaram sobre a vegetação orlada à árvore. Daniel sentou-se recostado ao ficus, fechou os olhos e viajou ao passado. Gilberto, que se regozijava ao torturar uma lebre branca pressionando a extremidade de um graveto contra os olhos do animal, aterrorizou Ávila na infância. O resultado foi uma auto-estima volúvel e o despertar de um ódio que, aos poucos, tornou-se intrínseco. Por inúmeras vezes divagou e desejou morte atroz para o inimigo.
Filho da ex-prostituta Palmira Soares de Souza e do estelionatário chauvinista Orlando Borba Costa, Gilberto era um mentiroso inveterado que velava a realidade com sonhos de consumo. Daniel teve o desprazer de conhecê-lo de modo casual, pois sempre estava em frente ao seu colégio no período da manhã. Normalmente inebriado pelo uso de mescalina, Souza desempenhava trabalhos esporádicos de entrega de panfletos. Um pretexto para entrar na farmácia de Rui de Castro e verificar se o farmacêutico idoso estava sozinho ou não. Castro sofria de glaucoma, o que facilitava o furto de medicamentos. Mescalina, butofenia e dexedrina eram os preferidos de Souza, apreciador de narcóticos desde os onze anos. A primeira experiência foi supervisionada pelo pai que o levou a uma casa clandestina de jogos.
Gilberto, amiúde, tinha o hábito de roubar e furtar calçados e materiais escolares dos estudantes, mas nunca visando obter lucro. Levava tudo para o Parque das Figueiras, onde enterrava ou queimava os objetos. Ao prejudicar os outros, satisfazia-se como ninguém. Vivia em função de veleidades, preenchendo o seu abismo existencial com a promoção de contravenções. Tais atos lhe garantiam um semblante jamais esquecido por Daniel, humilhado inúmeras vezes por Souza.
Certa vez, ele o obrigou a se despir em frente ao colégio. Em troca, não queimou os livros e cadernos de educação moral e cívica, ciências sociais, história e português. Numa outra oportunidade, chamou Daniel e quando ele se aproximou fez algumas perguntas óbvias. Sem o garoto perceber, armazenou algumas cápsulas de dexedrina dentro da mochila. Depois de minutos, realizou uma ligação anônima para o colégio denunciando que Daniel estava portando entorpecentes. Houve episódios em que Gilberto desferiu socos contra o rosto de Daniel simplesmente por julgá-lo fracassado, alvo digno de qualquer forma de sadismo.
A humilhação assegurava a Gilberto um falso prazer de auto-afirmação que nem mesmo ele reconhecia, em seu âmago, como satisfatório. O sorriso irônico destacando somente os dentes da direita era precedido por uma gargalhada estridente. Quem não visse a cena juraria se tratar de um animal em estado convulsivo, excessiva era a sonoridade. O contraventor desdenhava a massa de estudantes que seguiam os preceitos estabelecidos pela reacionária instituição familiar; um paradoxo, já que Gilberto também tinha os pais como norteadores, embora ambos de comportamento volátil.
Os atos do jovem se tornariam letais ao completar 17 anos. Orlando Borba, para comemorar o aniversário do filho, o levou para caçar e pescar ao longo de um final de semana nas imediações do Rio Tumbasca. Apresentou-lhe dezenas de armas brancas e de fogo. Sentiu-se atraído pela leveza da Glock 17, calibre de nove milímetros; também demonstrou excitação ao tocar pela primeira vez uma caçadeira Browning Gold Hunter automática. Mas foi ao segurar uma besta Harton e um arco Magnum Master que os seus olhos intumesceram. Ficou sensibilizado pela delicadeza dos instrumentos e, por segundos, lacrimejou. Este foi o primeiro indício do interesse de Gilberto por métodos mais rústicos de violência contra seres vivos. Odiava os outros tanto quanto a si mesmo, embora pusilânime em demasia para promover a automutilação.
Ao retornar à cidade na segunda-feira, 13 de junho, Gilberto decidiu não caçar apenas animais irracionais. Às 11h30 estava em frente ao portão do Colégio Francisco Batistella aguardando a saída dos primeiros garotos. Paulo Bartolo Neto, Ricardo Bartolo e Samuel Nitberg, os três com doze anos, foram os primeiros abordados por Souza. “Ei, garotos. Como vão? Vim falar com vocês porque preciso de ajuda para concluir a instalação de uma tirolesa no Parque das Figueiras. O que acham de contribuir? Em troca, pago cem dólares a cada um”. A proposta interessou aos três, mas a reputação de Gilberto deixou-os receosos. Para convencê-los, Souza mostrou o dinheiro previamente. Sem titubear, e com ingênuos sorrisos enobrecendo-lhes os rostos, aceitaram o acordo, ratificando a confiança tão almejada por Souza.
Quando chegaram ao parque, Gilberto mostrou o local da instalação e pediu que um deles o acompanhasse até a margem do rio para buscar um pouco de água. “Temos de limpar as ferramentas depois de encerrado o trabalho. Então peço apenas que um de vocês me acompanhe. Quem vai?”, questionou. O menor, Ricardo Bartolo, se prontificou a ajudá-lo. Ao se afastarem setecentos metros do local onde deixaram os outros dois garotos, Souza pediu para Ricardo percorrer o restante do caminho sozinho. O jovem Bartolo, preocupado e temeroso, estranhou a atitude de Gilberto e resistiu em continuar o trajeto. “Não conheço direito este lugar. Prefiro ir embora para casa”, disse o garoto, segurando a barra da calça e observando com olhos trêmulos a floresta à sua volta.
Para acalmá-lo, Gilberto argumentou: “Precisamos de outro recipiente para encher de água. Do contrário, não poderemos nos limpar depois de terminada a instalação. Além disso, como seus pais reagiriam se soubessem que você veio até o Parque das Figueiras em companhia de um estranho? Acalme-se, não há nada a temer”. A resposta de Souza desvaneceu as suspeitas de Ricardo que a passos vagarosos caminhou em direção ao rio. Quando olhou para trás, Gilberto desaparecera.
Souza percorreu duzentos metros a oeste e mais cem ao norte, onde havia uma barra de concreto retangular. A ergueu e de dentro de um buraco de um metro e meio de profundidade retirou um arco, uma caçadeira Browning e um battle mace. Colocou tudo dentro de uma mochila de camping e correu até a margem do Rio Tumbasca. Ao vê-lo, Ricardo questionou onde estava a vasilha. “Me desculpe, não a encontrei. Bom, mas tenho uma idéia. No final da semana passada, eu e meu pai viemos aqui e achamos alguns pneus velhos. Podemos usar para alguma finalidade. Vê aquela árvore gigantesca? Deixamos atrás dela. Vamos lá pegar”, destacou Gilberto. Apreensivo, Bartolo coçou o pescoço e seguiu a recomendação de Souza. O fez por medo e não por interesse. Lembrou-se dos inúmeros relatos dos colegas destacando que Gilberto tornava-se vingativo ao ser contrariado.
Ricardo foi até o local indicado e ergueu o primeiro pneu, enlameado por estar em uma região de várzea. Logo sentiu uma dor súbita e ingente; como se seus ossos fossem liquefeitos. O sangue deslizou pelo corpo franzino e macerado do pequeno Bartolo. Fragilizado, não entendeu o acontecido; desabou no chão, se pôs a chorar e se debateu contra a terra molhada pela recente alta do nível do rio. Enquanto Ricardo soluçava e gritava exasperadamente pelos pais, Gilberto tirou o battle mace da mochila e desferiu um golpe certeiro em suas costas. A dor impediu Bartolo de articular qualquer palavra, se limitando apenas a proferir sons ininteligíveis e chorar. O desespero foi tão intenso que chamou a atenção dos animais. Ouvia-se o bramar de cervos a oitenta metros do local, além de aves agitadas entre os arbustos.
Souza apenas observava a dor de Ricardo, sem qualquer comiseração ou tendência à redenção. A força do golpe fez com que alguns pregos, geometricamente alinhados, penetrassem as costas de Ricardo. Gilberto extasiou-se ao ouvir algumas costelas do garoto se partindo. A fragilidade o excitava tanto que se sentiu impelido a comentar. “Tão vulnerável é o homem deitado. Ainda assim, na altivez de sua estupidez, recebe a morte como se fosse um ato desnaturado. Que triste! Sucumbe relaxado, de olhos fechados, negando a morte o direito de levá-lo. Não resista, meu amigo! Se aprumar no momento inoportuno prolonga o sofrimento; desvirtua a sua existência e enaltece a inútil intransigência. Por que choras no porvir do inevitável quando a vida, um bem impalpável, vale menos que um grão de areia? Não morra! Não viva! Esqueça a existência e parta como se ao longe um barco o levasse por águas turvas ao túnel de entrada do limbo. Lá sim, nada há de sentir, pois até mesmo o aroma de sua pele se tornará estéril. Não se preocupe! Antes espoliarão de ti as emoções, os sonhos e as lembranças. Talvez serás como eu, vazio e impreenchível. Não esqueça: não se trata da morte, não se trata da vida, apenas a virulência da sorte que abarca uma saída”.
O jovem Bartolo ficou banhado em um líquido rubro tão vivaz que cintilava. Souza se sentiu poderoso e percorreu a trilha de sangue com os dedos da mão direita. Nunca sentira o sabor do sangue humano, nem mesmo o cheiro; tratou de saciar a curiosidade. Ficou inerte por alguns instantes, franziu a testa e entrou em digressão; logo recobrou os sentidos. Pegou o pneu das mãos da vítima e o colocou no pescoço, formando um necklace. Tirou um isqueiro do bolso direito e do esquerdo uma garrafinha contendo etanol. Sem pestanejar, embebedou a borda interior do pneu em álcool, ateou fogo em um pedaço de papel e jogou no pneu; não levou mais que três segundos para estar em chamas. Bartolo se debatia no chão enquanto exprimia palavras incompreensíveis. Após dois minutos e meio, a vida de Ricardo se esvaiu aos 12 anos. Do rosto desfigurado, restou intacta apenas a arcada dentária.
Despreocupado com o cadáver, Gilberto encarou a situação como um teorema grego. “É sempre assim. No final todo mundo vai embora”, gritou em tom irritadiço. O jovem assassino lamentou que Ricardo tivesse morrido tão rápido; prometeu a si mesmo, em solilóquio: “Da próxima vez serei mais cauteloso”. Souza limpou as armas nas águas do Rio Tumbasca e observou o sangue espesso formar uma leve camada à margem. Passados três minutos, apareceram dezenas de piranhas digladiando-se umas contra os outras para se alimentar do sangue.
Quando Gilberto se aproximou do local onde era aguardado por Paulo e Samuel, jogou a mochila com as armas atrás de uma figueira para evitar suspeitas. Ao parar frente a eles, as primeiras perguntas foram sobre a demora e o paradeiro de Ricardo. Souza disse que o garoto resolveu se lavar no rio e logo se juntaria e eles; estranharam, mas aceitaram a justificativa.
No mesmo momento, em frente ao colégio, Daniel Ávila questionava todos, perguntando se alguém viu o seu primo. Sem obter êxito, voltou para casa questionando-se sobre o motivo pelo qual Samuel, que diariamente estava em frente ao portão o aguardando, foi embora. A ausência fez Ávila preocupar-se com a possibilidade de um infortúnio. Além disso, naquele dia, o garoto deveria dormir na residência de Daniel já que os pais de Nitberg viajaram a trabalho.
Os imaculados e o semeadouro: no candelabro do matadouro
Gilberto olhava para Paulo e Samuel como se fossem ovelhas prestes a sucumbir diante da imolação. Já não distinguia animais de seres humanos. O desejo de ceifar vidas era tão intenso que encarava o homicídio como um instrumento de fortalecimento. Era tão contumaz que a arbitrariedade lhe dirimia a vida social na totalidade. Mas quando queria, ocultava bem a verdadeira face, assumindo um personagem demasiado carismático.
Com um sorriso pérfido, Souza deu dois tapinhas nas costas de Paulo e Samuel, enfatizando ao primeiro a necessidade de mais madeiras para terminar a escada de acesso à tirolesa. Gilberto salientou que há oitocentos metros dali um visitante esqueceu um grande número de pedaços de madeira. “Podemos usá-las. Serão de ótima valia!”, sugeriu em tom excitado. Cinco minutos depois da saída de Paulo, Gilberto disse a Samuel: “O garoto esqueceu de levar o saco de estopa para transportá-las. Vou até ele. Me espere aqui”. Antes de encontrá-los, Souza abandonou a mochila com as armas perto do local onde disse haver madeiras. Correu como um leopardo e quando avistou Paulo, se escondeu atrás de uma figueira. Bartolo percebeu o barulho, mas como estava em uma floresta, acreditou ser apenas um animal em meio à vegetação.
A pueril conduta dos garotos, crentes de ter a sorte ao lado, acreditando que ganhariam uma quantia bastante superior à mesada ofertada pelos pais, despertava em Gilberto uma excitação que lhe arrepiava até os pêlos finos da nuca. Mordia os lábios paulatinamente e observava Paulo reunindo os pedaços de madeira espalhados e forrando o chão em meio a gravetos e folhas. Atento a atividade, Bartolo sequer olhava ao redor. Quando Gilberto percebeu a distração, correu em direção a ele, saltou com os dois pés juntos e golpeou-lhe as costas; Paulo caiu dois metros e meio à frente. A conseqüência mais visível foi um corte na testa, provocado pelo atrito com o cascalho que ornava a árvore mais próxima.
Apesar da visão embaçada e da tontura, conseguiu reconhecer as cores da roupa que Souza usava naquele dia; ficou chocado e sentiu náuseas. “Por que está fazendo isso? O que fizemos? Por favor, pare! Não temos nada contra você”, suplicou Paulo gaguejando, tremendo e lacrimejando. Sem dar ouvidos às perguntas, Gilberto tirou uma navalha do bolso e a girou em direção a boca de Bartolo, provocando cortes profundos dos dois lados. Quando Paulo começou a gritar, Souza tirou a blusa, rasgou a manga da camiseta e fez uma mordaça.
Sem descartar o desejo de fuga, Gilberto tirou do bolso inferior da mochila dois pequenos pedaços de corda de fibra. Utilizou-os para amarrar as mãos e os pés de Paulo. O algoz sorria extasiado enquanto era observado pela vítima. Gilberto estalou o dedo e colocou a mão direita no bolso da calça, de onde tirou o porta-agulhas de sua mãe. Quando viu Gilberto sorrindo ao manusear as agulhas com esmero o garoto deu golpes no ar, mesmo com os pés amarrados; em menos de dois minutos a estafa o venceu.
O verdugo se aproximou de Paulo, segurou uma agulha e a introduziu no centro da pupila do olho esquerdo da vítima. O estremecer do corpo da criança foi o primeiro sinal de convulsão. Depois de alguns instantes, metade da agulha de dez centímetros foi introduzida. Gilberto a puxou de modo tão abrupto que arrancou o olho do garoto, fazendo respingar sangue em sua boca. Sentindo prazer mórbido diante da situação, Souza deslizou a língua pelo globo ocular e o colocou dentro da boca, mastigou três vezes e cuspiu no chão. Gilberto sentou recostado a uma árvore defronte aquela onde estava Paulo e fitou o sangue escorrendo pelas maçãs da criança; pareciam lágrimas vermelhas. A situação era tão desesperadora que Bartolo só desejava a morte.
Indiferente ao sofrimento que infligia, Souza retirou a besta Harton de dentro da mochila, se afastou três metros de onde estava, mirou a boca de Paulo e apertou o gatilho. Segundos depois, a flecha dilacerou a língua do garoto. A ponta atravessou a boca e chegou até a nuca de Paulo; ficou cravada na árvore, como se fosse um suporte, evitando que a cabeça do infanto, já sem vida, perdesse a retidão. Souza ainda se levantou e deu chutes colocados nas coxas de Bartolo; queria saber se realmente estava morto. Para finalizar, retirou uma faca de dentro da meia, cortou alguns galhos e jogou em cima do cadáver. Como era outono, juntou um pouco de folhas e forrou os galhos, fazendo uma cobertura uniforme, embora qualquer corrente de ar pudesse arrastar tudo. Não tinha intenção de ocultar o homicídio, apenas evitar que alguém se deparasse com o cadáver antes de concluir o plano.
Lembrando-se que Samuel os aguardava, limpou o sangue das mãos, enterrou as armas que usou no crime e percorreu metade do caminho correndo e o restante caminhando. Com expressão serena e um sorriso exagerado, Gilberto foi ao encontro de Nitberg. “Ricardo ainda não voltou. Me desculpe, mas preciso procurá-lo”, disse o impaciente Samuel. Evitando perder a calma, Gilberto tentou controlar a situação. “Façamos o seguinte. Enquanto esperamos, vamos usar a madeira que eu trouxe para terminar a construção da escada. Se eles demorarem mais, podemos procurá-los juntos. O que acha?”, sugeriu Souza. Samuel conhecia o comportamento dissoluto de Gilberto, mas optou por continuar o trabalho quando lhe foi mostrada novamente a nota de U$ 100 a ser entregue antes do pôr-do-sol.
Já era 14h quando Daniel percorreu em vão todo o bairro à procura do primo. Decidiu retornar ao colégio e perguntar ao porteiro Chico Pessoa se viu Samuel naquele dia. “Eu fiquei na portaria até 11h30 porque tinha agendado compromisso no Banco ao meio-dia. Normalmente nesse horário você já foi dispensado das aulas, não é mesmo? Então, quanto ao Samuel, eu o vi em companhia de um garoto desocupado e mais velho que está sempre aqui na frente. Não tenho certeza, mas acho que se chama Gilberto. Ah! Escutei falarem algo sobre o Parque das Figueiras”, revelou Pessoa. Ávila agradeceu a ajuda do porteiro, subiu no banco da bicicleta e pedalou em direção ao parque.
Ao chegar ao local onde estava Nitberg, Gilberto entregou-lhe um martelo e explicou como construir a escada. Não passou mais que cinco minutos e acabaram-se os pregos. Samuel virou o corpo em direção a Gilberto para pedir mais; ficou receoso ao vê-lo abrindo a mochila. “Ei, o que você está fazendo? Me mostre o que tanto esconde aí dentro”, questionou o garoto. Souza declarou serem ferramentas para o caso de haver algum imprevisto. Nitberg não acreditou e insistiu para mostrar o interior. Gilberto sorriu, coçou a cabeça e retirou um alicate, uma chave de fenda e uma furadeira. Mesmo sabendo que estes três itens não ocupariam o espaço de 120 litros da mochila, Samuel calou-se e fingiu estar tudo bem.
Na pressa, preocupado com a possibilidade de Samuel procurá-los pela demora, Gilberto não racionalizou que a situação poderia gerar suspeita e levou apenas nove pedaços de madeira dentro do saco de estopa. Três foram bem pregados por Nitberg, mas os demais racharam. O garoto pediu que Gilberto trouxesse mais. Prevendo a fuga de Samuel, o chamou para buscarem juntos, justificando com o axioma de dois terem mais força que um. Samuel, dominado pela impaciência, não concordou; correu e disse que não queria mais o dinheiro, e sim procurar os amigos perdidos no parque. “Tenho certeza de uma coisa; estão correndo perigo neste lugar. Sei da existência de muitos animais selvagens por aqui”, afirmou Nitberg.
Encolerizado, Gilberto tirou a caçadeira Browning Gold Hunter da mochila e acionou o gatilho três vezes. O suficiente para que Samuel, a 20 metros de onde estava, caísse com os braços abertos sobre uma poça de lama. O impacto do tiro foi semelhante a uma pedra arremessada à longa distância. Inclusive, Samuel acreditou que tivesse sido atingido por uma. Os lábios tremeram quando ouviu um som ecoando pela floresta; seus olhos foram conduzidos até o ombro direito, onde uma flecha de ponta laminada se alojou. O garoto desesperou-se e gritou tão alto que espantou um grupo de anus escondidos em um arbusto a pouco menos de um metro do local onde caiu.
Gilberto, às gargalhadas, correu até Samuel e começou a rodopiar em torno do garoto, com os braços arqueados, como se desempenhasse uma liturgia primitiva. Além de ferido, Nitberg sentiu-se escarnecido. Com o galho de uma árvore ao seu alcance, quando Gilberto se aproximou, golpeou-lhe o rosto. Souza ficou furioso e saltou em cima das costas do garoto. De repente parou, preocupado em matá-lo antes da sevícia.
Sentou sobre as costas de Samuel e relatou-lhe em minúcias o que fez com os irmãos Bartolo. Nitberg, normalmente calmo e pacífico, foi sobrepujado pela ira. O seu ódio clamava por vingança. Entre seus dentes cerrados deslizava um líquido branco e espumante. Não queria fazer justiça, mas destruir um ser vivo inóspito, arraigado na devassidão e no sadismo. O rosto de Gilberto curiosamente não transmitia emoções, era como uma carcaça flagelada; de um vazio existencial tão nefasto que tinha o mesmo princípio existencial de uma bactéria.
Nitberg lucubrou os motivos que levaram Gilberto a viver daquele modo, contudo não chegou a nenhuma conclusão, mesmo que subjetiva. Souza não queria ser compreendido, inclusive descaracterizava qualquer forma de virtude. Segundo ele, pessoas existem apenas como objetos da imolação ou do morticínio. Outros tipos de morte, em seu comportamento ditado pela misantropia, são lúgubres fatos inopinados. Enquanto Samuel proferia palavras ofensivas contra Gilberto, o agressor tentava manter a calma. Perdeu o controle quando Nitberg lembrou que na verdade era ilógico ele crer que Orlando Borba Costa realmente era seu pai, já que sua mãe foi meretriz por tantos anos. Souza coçou a própria cabeça com força e feriu o couro cabeludo. Logo se levantou, segurou o braço esquerdo de Samuel e quebrou cada um dos dedos, enquanto gritava; afirmando que sua mãe é uma respeitável senhora.
Gilberto chegou, de fato, a se aproximar do comportamento de um ser humano comum, que naturalmente defende os seus semelhantes. Porém, é importante ressaltar que o fez apenas por egocentrismo; nunca aceitou qualquer iniciativa com o intuito de macular sua imagem. Como retaliação, pegou um galho fino e o introduziu dentro do nariz de Samuel que lutava para resistir à dor, irritando mais ainda Gilberto. Já exaltado, Souza tirou da mochila uma Glock 17, calibre de nove milímetros, e deu quatro disparos contra os dois tornozelos de Samuel. Enquanto o garoto ofegava e gemia de dor, Souza retirou uma faca Bowie Joseph Rodgers, que pegou escondido do quarto de seu pai, e fez quatro cortes profundos e transversais no peito de Samuel. O garoto já lívido não resistiu aos ferimentos e sucumbiu. Insatisfeito, Gilberto decapitou Samuel e encaixou a cabeça no galho de uma figueira.
Enquanto guardava as armas dentro da mochila Souza ouviu o som de uma bicicleta. Juntou os pertences que faltavam e correu o mais rápido que pôde. Ao chegar ao local do crime, Daniel caiu em prantos ao ver o primo decapitado. Não disse nada; se ajoelhou diante do ficus e pressionou as mãos contra o rosto, caindo em desalento. Perdeu as forças e ficou desnorteado, até que parou de soluçar. Ao recobrar os sentidos, correu floresta adentro procurando os irmãos Bartolo que, segundo o porteiro, também foram convidados por Gilberto a irem até o Parque das Figueiras.
Depois de vinte e cinco minutos pedalando sem destino avistou uma caixa de madeiras a quatrocentos metros ao norte. Também encontrou alguns galhos sobre o cadáver de Paulo Bartolo. Teve dificuldade para crer nos fatos; sobressaltado pela ira mordeu a língua. Concluiu que aqueles crimes foram cometidos por Gilberto Costa de Souza. Flashbacks tomaram conta dos pensamentos de Daniel que não tirava da cabeça o sorriso nauseabundo de Gilberto. Decidiu correr um pouco mais e, quarenta minutos mais tarde, viu o pequeno corpo mutilado de Ricardo Bartolo. O reconheceu pela roupa e também pelas iniciais R.B. que a mãe do garoto bordou nas meias.
Quando viu os corpos lembrou da recomendação do tio Fernando Fassina, tenente da Polícia Militar, que lhe disse para jamais remover ou tocar um corpo no local do crime, pois prejudicaria o trabalho da perícia. Daniel sentiu-se tão desolado que o som mais alto escutado por ele era do próprio coração; palpitava como o rufar de um tambor. Apesar de tomado por desejo febril de vingança, sabia que perseguir o inimigo poderia resultar em grande desventura. Decidiu abandonar o parque e pedalar dez quilômetros até chegar à casa da família.
Aos pais, relatou tudo que viu. Rosa ficou desesperada ao receber a notícia envolvendo o sobrinho. Sentiu-se mal e desmaiou sobre o sofá. Teve de ser levada até o quarto pelo marido. “Deixo-a em suas mãos, Júlia. Prometo que logo retornaremos”, disse João Carlos Ávila à filha. Ainda com as mãos sujas, por ter acabado de sair do viveiro, onde enxertava algumas mudas de laranjeira, o senhor Ávila pediu ao filho que o acompanhasse até a sede do Batalhão da Polícia Militar. De lá, se deslocaram ao parque, acompanhados pelo tenente Fassina que mobilizou uma equipe de sete policiais. Convidou também o delegado Rogério Basílio Prestes, da Delegacia Regional de Polícia (DRP); e o perito forense Gustavo Deconti, do Departamento de Polícia Científica (DPC).
Já passava das 20h, quando a equipe chegou até o local onde estava o cadáver de Samuel Nitberg. Os olhos azuis do garoto estavam esbranquiçados e com aparência viscosa. O corpo extremamente enrijecido era algo inédito para Daniel; nunca tinha visto um cadáver de perto. “Rapaz, isso pode surpreendê-lo na primeira vez, mas saiba que é algo muito natural. O corpo fica assim por causa do acúmulo de cálcio nos músculos”, explicou Deconti. A pele enrugada e amarelecida assustou o jovem Ávila que, por um momento, monologou se aquele realmente era seu primo. Enquanto Daniel continuava negando a si mesmo a realidade, João Carlos ratificou a identidade de cada um dos garotos mediante presença de Fassina, Deconti e Prestes; os três chocados com a brutalidade do agressor.
Enquanto conversavam e colhiam dados no local do crime, sete oficiais da Polícia Militar vasculharam o parque em busca de suspeitos ou qualquer vestígio deixado pelo autor; nada foi encontrado. Gustavo inferiu que o modus operandi adotado pelo criminoso não seguia nenhuma metodologia. Se houve qualquer tentativa de ordenar os atos, o inesperado a suplantou. Gilberto sequer cogitou tal possibilidade e, como assassino amador, quis apenas saciar o abrupto anseio de usurpar vidas.
O cadáver de Paulo era o que estava em melhores condições, apesar do amiúde odor de putrescina e cadaverina. O novato cabo Joaquim Marcílio dos Reis, que também nunca tinha visto um morto, ameaçou acender um cigarro quando estava ao lado de Bartolo, mas Deconti o interrompeu. “Companheiro, saiba que gás sulfídrico em um cadáver é inflamável. Nunca um cigarro lhe custaria tão caro quanto agora. Acha que vale a pena?”, questionou Deconti com uma expressão irônica.
Tarefa difícil foi reconhecer Ricardo Bartolo que estava com o corpo parcialmente queimado. A cabeça só foi reconhecida como de um ser humano pela estrutura óssea. “O menor, que até na hora da morte manteve a boca aberta, de certo, teve a morte mais trágica. As queimaduras, como podem ver, vão da cabeça até o início do tórax”, relatou Rogério Deconti. As outras partes do corpo estavam intactas, com exceção das profundas lacerações nas costas, provocadas pelo battle mace.
Até às 21h30, nenhuma arma foi encontrada, até que um repentino vento frio arrastou uma camada de folhas e, em meio à escuridão, a lanterna do sargento Fábio Luiz de Freitas reluziu algo envernizado. Quando se aproximou, a meio metro do tronco de um ficus, puxou o objeto e constatou que era uma faca. A Bowie Joseph Rodgers foi identificada por Fassina que coleciona armas brancas desde a adolescência. Os vestígios de sangue na lâmina não deixaram dúvidas de que foi utilizada para golpear a vítima. Pouco antes de saírem do parque, Daniel relatou as informações obtidas em conversa com o porteiro Chico Pessoa. Prestes se prontificou em colher o depoimento do homem. Antes salientou a importância de levarem as provas do crime (flecha, balas e faca) para serem analisadas na Delegacia Regional de Polícia.
Tiveram uma surpresa quando chegaram ao local; se depararam com Gilberto Costa de Souza. O garoto estava defronte à recepção e sentado no chão, arremessando algumas bolinhas de gude dentro de três copos de plástico, posicionados de forma oblíqua. O encontro inopinado levou Daniel a uma viagem abissal. Com olhos marejados deixou que a escuridão tentasse deglutir o bom senso, dando vazão a sentimentos rudimentares. Imaginou-se como membro de um pelotão de fuzilamento, observando frontalmente o corpo inerte de Gilberto na Berlinda. O vislumbrou também sendo executado em períodos remotos. De súbito, extasiou-se ao ver o inimigo na guilhotina, e também tendo os ossos mastigados por um tigre dente-de-sabre.
Ao ser chamado por Gustavo Deconti três vezes, Daniel voltou a si. Gilberto se levantou, fitou o garoto e pediu a atenção de todos. Com ar debochado, começou a cantar “a capella”, seguindo uma concisa cronologia, os fatos acontecidos na tarde daquele dia. No final, fez um lento movimento de 360 graus com o corpo e finalizou a canção com um falsete, questionando o paradeiro de sua Bowie. Deu muitas gargalhadas e seu rosto ficou rubro como uma maçã passada. Os policias, assustados com o que ouviram, perguntaram a Gilberto se tudo aquilo era verdade. “Sim, tudo é fato. Fatos completos e incompletos, dependendo de quem fala e também de quem ouve”, disse o garoto em tom sereno e satírico.
Diante da declaração, Prestes levou Gilberto para a sua sala. Quando Orlando Borba Costa chegou, acompanhado de Palmira Soares de Souza, exigiu que soltassem o garoto, alegando ultraje. “Como podem tencionar manter uma criança em cárcere? Vocês são loucos? Liberem-no agora e não me façam mais perder tempo”, gritou. A investida era mais um ato de ocultação da verdade sobre o filho. Orlando, apesar de conviver com fortes lembranças do passado, principalmente atos cometidos por Gilberto na infância, se negava a partilhá-las com qualquer pessoa, até mesmo familiares. Sentia-se violentado, mas nunca deixou nenhuma emoção negativa envolvendo o filho transparecer. Na delegacia, se recordou que com cinco anos de idade Gilberto já apresentava tendências à psicopatia. O número de gatos na vizinhança caiu em 20% durante período de seis meses no ano de 1959. Gilberto os enterrava vivo em um terreno baldio a duzentos metros de casa. O garoto teve vinte e dois animais até os dezesseis anos: onze cães, seis gatos, um porquinho-da-índia, uma iguana, um coelho, um hamster e uma tartaruga. Nenhum dos animais viveu com Gilberto por mais de sete meses. O destino mais trágico foi de Lorna; a porquinha-da-índia virou carne à caçarola em um sábado, quando os pais de Gilberto viajaram para visitar a avó Maria Luzia Domingues de Souza.
Astuto, Orlando negou o tempo todo que Gilberto fosse capaz de assassinar um ser humano; se restringiu a velar o passado do filho e pulverizar comentários fantasiosos. As investidas foram em vão; a intervenção de Borba Costa não teve qualquer efeito. “Saiba, meu pai, me responsabilizo pelas três mortes. Declaro aqui que os atos foram regozijantes. Se minha vida custar, pouco hei de pagar, pois a grandeza da finitude é a mais bela plenitude. Poucos têm esse prazer; de ver nos olhos da vítima a agonia de falecer. Matem-me, continuarei em débito, a não ser que minha vida valha por três. Dêem o veredicto! Será justiça, será ignorância, será a beatitude que aborrece a jactância? Nada sei, a não ser que a mortandade enaltece a minha salubridade. Aquele que destrói mais de uma vida, nunca terá nada a oferecer para substituir o que espoliou. A justiça existe com qual efeito? É a ilusão de confortar um coração já corroído pela incompreensão? Ou será a dor o agente transformador que arrebata do homem a essência do dissabor? Destruam-me e eliminem as cinzas para varrerem do mundo o fato de eu ser um de seus semelhantes. Morto serei por carregar em mim a sinceridade que lhes falta; ilusionistas da ribalta. Ocultam no seio de seus mundinhos limitados o único fato inquestionável e intratável, de serem animais que, enrolados em pedaços de tecido, se julgam civilizados. Não são! Do primitivo não carregam somente a herança instintiva. A petulância e a ignorância, que por ora ainda dorme, há de acordar, quando no momento oportuno sentirem a fragrância do desespero no ar”, disse Gilberto.
Palmira, desesperada com as palavras do garoto, estapeou-lhe o rosto. Como se estivesse em plano transcendental, não reagiu aos tapas da mãe; não sentiu dor. Mesmo com a insistência do pai em dizer a Gilberto que poderia encontrar meios de inocentá-lo, ele esbravejou e disse não se envergonhar de nada. Afastou-se dos pais e caminhou em direção a Rogério Basílio Prestes ladeado por Reis, Fassina e Deconti. Cutucou-lhe o ombro e falou: “Sou culpado, leve-me a uma cela, por favor”. Prestes olhou para o garoto e disse a ele para ir embora com os pais. Antes lhe entregou uma carta em papel timbrado, obrigando que comparecesse à delegacia às 8h para acompanhar o depoimento do porteiro Chico Pessoa e do vigia do Parque das Figueiras Flávio Augusto de Oliveira, outra testemunha que viu o garoto correndo em direção à saída alguns minutos depois de Daniel Ávila adentrar o local.
O réprobo e a dissimulação: o porvir da emancipação
Ao chegar da vez de Gilberto depor, por volta das 9h30 do dia seguinte, questionaram porque ele se preocupou em levar as armas embora e, se tinha intenção de entregar-se, porque fugiu com a chegada de Daniel. Souza declarou: “Bem, naquele momento eu estava cansado e minha única preocupação era uma possível retaliação por parte de algum civil. Me entreguei apenas porque jamais tive intenção de me esconder. É de soberba covardia o homem envergonhar-se de suas realizações, independente de quais sejam. Mesmo assim, retornei por ter muito estima pela faca esquecida em meio à floresta. Já imaginava que estivesse com vocês”.
Em momento algum, durante o depoimento, o garoto demonstrou mudança de comportamento. Calmo, finalizou que aguardaria a imputação dos crimes. “Nada mais tenho a declarar. Retiro-me da sala com a esperança de uma bela e suntuosa condenação”, ironizou. Gilberto desfrutou alguns dias de plena liberdade, até que o delegado foi à residência do garoto informar a sentença; pena de cinco anos de tratamento psiquiátrico no Instituto Dom João VI.
No início, o garoto hostilizava os funcionários e articulava rixas entre os internos. Certa vez, simulou uma convulsão após tomar sal de frutas e, quando o funcionário Roni Cândido foi socorrê-lo, retirou o aparelho de choque da cintura do agente psiquiátrico e acionou na boca dele descarregando 150 mil volts de energia. Depois de recuperado, Roni pediu demissão. Durante os primeiros seis meses, os funcionários lidaram com situações sem precedentes. Toda semana profissionais pediam demissão e outros, que nada sabiam sobre o garoto, assumiam função.
Quando Gilberto completou três meses de internamento, cessaram as contratações por falta de interessados. Preocupado, Maurício Teixeira, diretor do Dom João VI, convocou reunião com a Comissão Gestora de Assuntos Internos, composta por sete profissionais. Deliberaram que a solução seria remanejar Souza para a “Ala Vendita”; local para onde enviavam os internos com mau comportamento. Gilberto passou 27 dias no cubículo de três metros quadrados, ladeado pelo depósito de lixo hospitalar e outros dejetos. Não havia janelas na pequena cela e o oxigênio era proveniente de uma tubulação no teto. À noite, o chorume que escorria por uma fresta ao fundo da pequena cela provocava intensas dores de cabeça em Gilberto. Como parte da punição, era alimentado com ração animal pastosa. Irremediavelmente consumido pelas trevas, o rapaz esqueceu de seu aniversário de 18 anos, completados em 21 de setembro.
Depois de alguns dias percebeu que não consumia apenas água; se deu conta do fato quando, pela primeira vez, tocou o líquido consistente no interior do copo enegrecido pela sujeira. Como não consumia instantaneamente a bebida, com o passar dos minutos e das horas, insetos sobrepujados na cadeia predatória sucumbiam na água do copo de trezentos e cinquenta mililitros. A vindita era tão suja e úmida que musgos e fungos ornavam o ambiente. Havia também um cheiro putrefato de animais na tubulação.
Passados vinte dias na vindita, Gilberto percebeu que mesmo durante a noite, e sem qualquer fonte de luz, já conseguia identificar tudo à sua volta. Olhava para o cubículo como um habitat natural e não tinha mais problemas em eliminar os animais incômodos. Com o tato, inferia que tipo de animal estava perto dele; alguns serviram como alimento quando a ração lhe repelia o estômago e provocava náuseas.
Durante o dia, Gilberto refletia sobre como proceder quando fosse liberado do castigo, e à noite tinha alucinações relativamente etéreas – corria sobre um céu de algodão doce, segurava uma baioneta incandescente e a arremessava contra tríades angelicais. Enquanto o sangue celestial jorrava, ele sorria ouvindo um madrigal. O sonho terminava quando começava a praticar necrofagia. Sempre acordava com o cheiro do chorume.
Com o tempo, Gilberto se tornou impaciente e enjoou de viver naquele local que nada tinha a lhe oferecer. Quando saiu da Vindita, o rosto estava pálido, além da perda de nove quilos. O primeiro encontro foi com o diretor do instituto que quis ver de perto os resultados. Souza estava mais contido; apesar de introspectivo, tratou todos com educação exemplar. Criou um personagem e, com este, acreditava cegamente que os funcionários do instituto não seriam capazes de prorrogar a tão vislumbrada emancipação para além de cinco anos.
O demônio adormecido estava incólume e, dessa relação de sobrevivência, frutificou um Gilberto obstinado em se retratar diante da sociedade. Durante as sessões de terapia, caía em prantos e relatava aos psiquiatras sua entrega à escuridão quando soube que sua mãe era uma ex-prostituta e o seu pai um estelionatário; alguém que sentia prazer em contar dinheiro, mas não histórias ao filho. Pessoas a quem atribuiu a culpa pela sua conduta antisocial.
Atacar o pilar da estrutura familiar, denunciando falhas reais ou falsas no processo educacional e cultural, sempre foi uma peculiaridade positiva para sensibilizar qualquer ser humano; Souza sabia disso. Concluiu que essa seria a forma mais efetiva de garantir a liberdade, após ouvir conversa de Maurício Teixeira com o tesoureiro Pedro Frade, da Fundação Orestes Germano, entidade responsável por captar recursos para o instituto. No gabinete do diretor, Frade comentou que para continuar repassando verbas precisaria de uma contribuição. “Meu caro Teixeira, comece a liberar internos com bom comportamento. Com essa permuta para conter despesas, asseguramos a manutenção da entidade. É o único jeito de dar continuidade ao seu trabalho. Ou você prefere fechá-la?”, questionou o tesoureiro. Embora resoluto, o diretor do instituto concordou. A alguns metros dali, Gilberto tapou a boca com a mão para que não o ouvissem rindo enquanto espiava pela fresta da porta.
A austeridade cedeu lugar à flexibilidade. O instituto que ao longo de quatro décadas não dispensou mais de cinco internos por ano aumentou esse número para 25. Antes de findar o quarto ano internado, Souza conquistou a fama de ser um dos cinco internos mais bem comportados do instituto; logo garantiu a simpatia dos funcionários. No último ano, foi alvo de uma tentativa de homicídio praticada pelo interno Jonas Nitberg, diagnosticado como esquizofrênico após a morte do irmão Samuel.
Certo dia, pela manhã, Souza foi tomar banho e, de súbito, sentiu uma cotovelada na nuca. Era Jonas cobrando a morte do irmão. Assim que Nitberg começou a golpear a cabeça de Gilberto, quatro agentes psiquiátricos, de passagem pelo local, correram e seguraram Jonas; o imobilizaram com aparelhos de choque. Antes de sair do banheiro, Gilberto sussurrou no ouvido de Nitberg: “Amigo, o sangue de Samuel era tão agridoce, tão sublime e delicioso que nem mesmo o hidromel fabricado pelas mãos de um deus me deixaria tão satisfeito. Lamento e muito, sinto até mesmo meu coração palpitando de tristeza, por não ter a oportunidade de experimentar o sangue de outro Nitberg”.
Enfurecido, Jonas desejou impetuosamente o fim de seu inimigo. “Um dia hei de lhe encontrar, câncer; você, moribundo, usurpador de vidas. Corra o máximo que puder, delicie-se com a morte usando uma colher, mas não se esqueça; a sua fragrância o denuncia, mesmo que coberto pela neblina rasteje sob o manto da mescalina. És tão rejeitado pela vida quando pela morte; triste há de ser o seu fim, lançado à eterna solidão cristalizada em um fiorde. Isso na melhor das hipóteses. Se antes não encontrá-lo para fazer com que sinta o sadismo em sua essência mais plena. Será belo, pois lhe darei o prazer de conhecer a si mesmo no âmago; tocando suas próprias entranhas. Vai perceber que a natureza de sua mente é distinta da sua essência material. Não desvaneça, verme! É muito cedo para desfalecer; o seu destino é a extremidade de uma corda que balança em contraposição aos seus anseios. Viva o ódio e o roubo da ingenuidade! O destrinchar do ópio que evidencia sua debilidade!”, gritou Nitberg.
Apesar das hostilidades de Jonas, Gilberto contraiu apenas uma fratura no nariz e algumas escoriações no rosto. Depois do episódio, foram colocados em alas distintas e nunca mais se encontraram. Apesar da confusão, Nitberg voltou para casa mais cedo. Gilberto ainda teria mais seis meses a cumprir até ser liberado em maio do ano seguinte. Se dispondo a desempenhar atividades voluntárias e também a ajudar os agentes psiquiátricos a evitar conflitos entre os internos, Souza foi dispensado com 80% de aprovação por parte da Comissão Gestora de Assuntos Internos. No dia, apenas sorriu, agradeceu com extrema singularidade e voltou para casa.
Palmira e Orlando programaram uma festa de boas-vindas; reuniram vizinhos e familiares. No dia, um jornal local publicou um editorial atacando o sistema judiciário brasileiro e usando como exemplo o caso de Gilberto. O poder aquisitivo da família de Souza era o suficiente para garantir que o filho tivesse, no mínimo, uma vida social artificial, construída sob o dogma da moeda. Antigos amigos contraventores, pessoas desconhecidas, alpinistas sociais, bicheiros e políticos locupletavam o cenário no dia do retorno.
Os pais de Samuel Nitberg, com o apoio da família Bartolo e também dos Ávila empreenderam uma manifestação em frente à residência de Orlando Borba Costa. A mobilização foi abafada com o alto som dos amplificadores de uma banda contratada para animar a festa. Os manifestantes movimentaram bandeiras com os rostos de Samuel, Ricardo e Paulo. Daniel Ávila, acompanhado dos pais, carregou uma faixa defendendo revisão do código penal e exigindo pena de morte para casos em que o assassinato é classificado como barbárie.
Do sótão da residência, Gilberto, com um megafone em mãos, contava piadas e, em tom de deboche, convidava os manifestantes para participarem da festa. Os olhos de Ávila ainda transmitiam o mesmo ódio de cinco anos atrás; conservou o sentimento para jamais esquecer seu maior inimigo. “O sistema judiciário brasileiro é extremamente ineficaz e falho, porém nunca vai ser capaz de suplantar a hombridade. A justiça é para todos. Apesar de parecer ingenuidade da minha parte, acredito que sempre teremos pessoas dispostas a cobrá-la enquanto conceito primordial de cidadania e não exercício de autoridade. Lamento pela sua liberdade, Gilberto, e nunca se esqueça; jamais inventaram sabonete que elimine o cheiro do sangue dos inocentes!”, gritou Daniel Ávila de cima do capô do carro de seu pai. Receosos com a segurança de Gilberto, Palmira e Orlando, no dia seguinte, o levaram para viver a milhares de quilômetros dali; o seu paradeiro jamais foi descoberto.
Dois anos se passaram e, para a maioria, os crimes cometidos por Souza se tornaram pouco significativos; vaga reminiscência. Amigos e familiares das vítimas encontraram em formas alternativas de vida o consolo para tanto sofrimento. Os Bartolo se mudaram para o Vale do Cedro, aderiram ao taoísmo e toda semana organizavam reuniões na tentativa de contatar Ricardo e Paulo. Já os Nitberg, fundaram o primeiro movimento em defesa da natureza de Aretema; construíram um chalé na Serra das Brumárias e passavam o dia estudando chakras e aprendendo a controlar a energia vital do corpo (prana). Apenas os Ávila não alteraram o padrão de vida. O cotidiano de Daniel se resumia a faculdade de antropologia e também a ajudar o pai nas atividades campeiras. Mas, mesmo com o passar dos anos, ainda nutria o desejo de encontrar seu inimigo, embora não pensasse muito a respeito.
A retaliação e a despedida: o desterro de uma ferida
Encerradas tempestuosas lembranças, Daniel aprumou os longos cabelos para trás da orelha e se levantou. Naquele dia 3 de junho de 1975, após sete anos sem contato direto com Gilberto, algo se transfigurou dentro de Ávila minutos após a divagação. Estava com expressão mais serena; a pele alva, de fato, saiu da lividez e voltou ao tom natural. Os olhos negros como a noite espreitavam Souza a alguns metros dali – o voyeurismo contrastado com uma infinidade de idéias que passavam pela cabeça de Daniel. Olhou para o relógio e era 17h57 quando resolveu sair da sombra da figueira e caminhar em direção a Souza.
Sorrindo e andando a passos curtos e lentos, se aproximou de Gilberto e estendeu a mão para cumprimentá-lo. Souza ficou tão surpreso com a presença de Daniel que o graveto usado para torturar a lebre, depois executada a meio metro de onde estavam, caiu da mão direita. Com lábios trêmulos perguntou: “O que faz aqui a esta hora? Nunca mais o vi perto da Ferrovia do Colono”. Ávila explicou sua passagem pela Biblioteca Municipal e emendou: “Como meu pai só poderia me buscar às 20h, optei por empreender uma caminhada. Que tal me acompanhar?”, convidou Daniel com os olhos fixos em Gilberto.
Souza ficou abismado com o comportamento de Ávila e sentiu um incompreensível calafrio lhe subir a espinha. Mas como ao longo dos 24 anos de existência nunca deu motivo para desconfiarem de sua coragem, deu-lhe um aperto de mão e sorriu. Com voz plácida, Daniel sugeriu que passassem pelo Parque das Figueiras; Souza concordou sem pestanejar. Antes de iniciarem a caminhada, Ávila pegou a lebre para enterrá-la no parque, em um pequeno cemitério clandestino, onde jaziam os animais atropelados na ferrovia.
Daniel, iniciando conversa frívola, questionou como Gilberto ocupava o tempo. Com ar de escárnio, o rapaz respondeu: “Meu maior hobby ainda é a caça, principalmente animais selvagens. Bem, a lógica é uma só; dos fracos a natureza dá conta”. Ávila sorriu e disse que realmente faz sentido. Depois de caminharem quase dois quilômetros chegaram ao pequeno cemitério. A imagem do sol no horizonte se dissolvia, dando a impressão de que as figueiras estavam mais imponentes; a escuridão típica do outono suplantando a luminosidade.
Daniel pediu para Gilberto cavar um buraco para enterrarem a lebre. “Bem capaz que vou fazer isso. De jeito nenhum. Faça você. Enterrar ou não este animal, nada me acrescenta”, respondeu Souza. Calado e sem replicar as palavras do rapaz, Ávila lhe entregou o pequeno animal; ajoelhou-se e começou a cavar com as mãos. Quando estava terminando o serviço, contou: “Não sei se você sabe, mas muitas das tribos indígenas que visavam preservar sua herança cultural praticavam antropofagia quando morria algum familiar. Uma forma de evitar que servissem de alimento para os vermes. Para ser mais exato, uma liturgia para preservar a essência de quem morreu; seja se alimentando da carne ou do sangue. Muitos povos enxergavam o corpo humano como um templo que não tinha razão de ser violado, embora inanimado. Enterrar alguém, em culturas remotas, é o mesmo que fadá-lo ao esquecimento, arremessar a um buraco abissal. Por isso, penso eu, que cada ser humano tem a obrigação de enterrar os seus”. Daniel Ávila calou-se, olhou atentamente para Souza e apontou-lhe o buraco.
Gilberto se aproximou, segurou a lebre pelo pescoço e a arremessou cavidade adentro. Souza não percebeu nenhum movimento, mas sentiu que não podia se mexer. Era Ávila imobilizando a cabeça de Souza. Daniel disse: “Se não respeita os vivos, que pelo menos não desrespeite os mortos. Agora façamos o seguinte, assim poderei perdoá-lo. Tire a lebre do buraco e coma a sua carne”. Souza retrucou: “Você está louco!”. Ao sentir que não conseguiria sair da situação, concordou e aproveitou para pensar em uma alternativa. Densa nebulosidade pairou sobre a cabeça de Souza que transpirou de medo. Ávila aproveitou para frisar: “Estou feliz com a situação. Vejo algum tipo de emoção habitando sua carcaça flagelada”.
Ao ver Gilberto assustado, mas também vislumbrando uma saída, tirou um alicate do bolso e disse que arrancaria cada uma de suas unhas se não fizesse um cerimonial em respeito à lebre. Souza sentiu um azedume nos lábios, antes mesmo de dar a primeira mordida. Respeitou a ordem de Ávila e dilacerou vagarosamente o peito branco do animal, engolindo até mesmo os pêlos. Observando a expressão de asco no rosto de Souza, disse: “Qual o motivo dessa expressão de nojo? Saiba! Um animal herbívoro é mais limpo que um ser humano!”. Quando o sangue da lebre escorreu pelos lábios de Gilberto, Daniel chamou-lhe a atenção e disse para não deixar sobrar nada, fosse uma gota de sangue, crânio ou os olhos. Depois de consumi-lo, Ávila afirmou: “A partir de agora o animal é parte de você. Dividirá para sempre a carne o sangue do animal que matou”.
Gilberto, inerte diante da situação, pediu: “Agora me deixe ir embora. Entendi muito bem a sábia mensagem”. Ávila não autorizou; tirou dois pedaços de corda de fibra do bolso e o mandou recostar à figueira. Depois de amarrar-lhe os pés e as mãos, Daniel tirou o alicate do bolso e arrancou a unha do dedão da mão direita de Gilberto. O rapaz gritou, olhou para ele e disse que aquilo não fazia parte do trato. Ávila apenas sorriu e salientou: “Não sou um assassino, mas acredito que uma morte só pode ser paga com outra”.
Os dedos de Gilberto ficaram com as pontas vermelhas e algumas gotas de sangue percorreram os vãos. Daniel sorriu e falou: “Dívidas são pagas somente quando existe valor de equiparação, do contrário o débito subsiste”. Souza o fitou e declarou: “O que aconteceu há sete anos foi uma casualidade, e os garotos bem poderiam ser outros”. Sem se pronunciar, Ávila assoprou a terra fronte a uma lápide, ladeada pelo buraco onde a lebre seria enterrada, e observou a tampa de um caixote.
O carimbo da Companhia Ferroviária Tumbasca continuava intacto mesmo depois de tanto tempo. Daniel puxou a parte superior da caixa e observou o conteúdo: um bacamarte de amurada em perfeito estado – fabricado em 1863 e trazido dos Açores pelo seu tataravô, Bernardo Álvares Ávila, ex-capitão da marinha lusa. Havia também um saco de pólvora, algumas caixas com fósforos, uma machadinha kaingang, três tacos de madeira banhados em cerol, uma zarabatana e um fundíbulo. As armas foram enterradas naquele cemitério clandestino dois meses antes. A maior parte era herança que o avô Bernardo Álvares Ávila Neto deixou para ele. Como seus pais eram pacifistas, evitou que desfizessem das armas enterrando-as no pequeno cemitério.
Depois de retirá-las do caixote, Ávila enfatizou: “O homem branco não tem relação cerimonial com as armas, ao contrário dos indígenas. Estes as concebem com critério de artefato artístico. Olhe esta machadinha! Uma arma que simboliza a extensão do braço humano. Já foi muito utilizada em guerras e conflitos para decepar braços na região do úmero ou da escápula. Sabia disso, meu camarada?”.
Daniel se predispôs a fazer uma demonstração; sobressaltou que não aceitaria qualquer negativa como resposta. Com um olhar desafiador, Gilberto observou Ávila se aproximar. Daniel golpeou-lhe o braço direito na região do úmero e depois da escápula. Souza começou a gritar e esbravejar: “Você não é diferente de mim. Olha o que fez! Se considera melhor? Temos as mesmas raízes. Fecundados pela devassidão e nascidos da degradação!”. Daniel ignorou e entregou-lhe uma cabaça para armazenar o sangue que, incessante, escorria. “Beba, Gilberto. Desta vez, seja esperto”, ironizou Ávila.
Daniel retirou do bolso uma agulha de máquina de costura e a introduziu no septo de Souza. “Na falta de um paresi, a agulha lhe cai bem”, comentou. Depois de penetrá-la, deu um golpe sutil com o cabo da machadinha. Gilberto ofegou e não conteve mais a dor; duas linhas oblíquas e rubras deslizaram pelos seus lábios. Foi a primeira vez que sentiu o sabor do seu sangue, além do aroma primordial e excelso da própria morte.
Gilberto ficou lívido e seus lábios secaram, perdendo a cor natural. Daniel abriu o saco contendo pólvora; retirou um punhado e esfregou um pouco abaixo da clavícula, na região do corte. Pegou uma caixa de fósforos, acendeu cinco palitos de uma vez só e ateou fogo no braço de Souza. A primeira reação foi fechar os olhos. Uma luminosidade rápida como um raio foi precedida por dor intensa. A sensação foi de que alguém estava lhe grelhando. Daniel comemorou consigo mesmo o efeito. “Ele não morrerá tão cedo graças ao fogo e a pólvora”, refletiu.
Ávila escorou sobre uma árvore e descansou por um instante. Ao sentir-se revigorado, pegou um taco banhado em cerol e desferiu dezenas de golpes consecutivos nas costas de Gilberto. A cada pancada, vestígios de pele grudavam no taco. Quando Daniel resolveu observar as costas de Souza, se deparou com uma massa de carne viva. Os golpes extraíram pelo menos 50% da pele. Gilberto tentava preservar a dignidade e, em vários momentos, seu sorriso contrastou com expressões de desespero e êxtase.
Já se passavam das 18h30 quando Gilberto, consumido pela fadiga, estava todo ensangüentado. De sua boca saíam borbulhas de sangue misturadas com saliva. A estafa era intensa e mal conseguia movimentar o corpo. Apesar das dores, empreendeu uma cantoria que consistiu em palavras mal articuladas e incompreensíveis. Era a bachiana brasileira nº 1 de Heitor Villa-Lobos, ironicamente improvisada por Souza com um complemento lírico. Usou os dedos da mão esquerda e os lábios para representar a cadencia dos violoncelos.
Encerrado o canto, Gilberto teve parte das duas orelhas arrancadas com um alicate. “Pela amiúde e ingente relação que tens com a música o condeno a parcial inaptidão de jamais apreciá-la de novo”, salientou Daniel Ávila; em seguida, recitou:
Por que a carne palpita quando clama pela arte?
Seria mero rudimento de um coração desatento?
Ou orvalho vermelho preso a um estandarte?
Não! Regozijo da incompreensão a contento!
Se a pele evanescente suplicar pelo anil
Arranque as vísceras e componha uma canção
Entregue a existência soterrada em nihil
Se a dor fugaz não dignificar uma unção
Face petrificada é a seresta de um desterrado
Refém de palavras moribundas em lábios semimortos
Que clama ao espelho lagos de sangue sobre o prado
Vislumbra ao relento a chegada de ventos tortos
Canções nutrem e despedaçam sentimentos
Ricocheteadas pela virulência de ocasiões
Que do âmago resgatam singulares momentos
De amor, ódio e mais uma miríade de emoções
Bela forca hei de tecer com suas cordas
Contumaz ícone do definhamento musical
Observe o desvanecer iniciado pelas bordas
Até deglutir-se em desespero outonal
Talvez não seja loucura e nem pieguice
A despótica pretensão de rejeitar a vida
Desprezar ao horizonte o limiar da velhice
Reivindicar para si o direito a partida
Quão bela é uma vida que jaz no âmago da morte
A pele massageada com o dorso de uma navalha
Convite à carne moribunda desfigurada pela sorte
Que do tártaro aguarda a suavidade da mortalha
Filho bastardo de Deimos, por que se embriagaste?
Tomastes quantos banhos sob o fel da degenerescência?
Bebeste do ódio para que a alma se desgaste?
Não pulverize com iniqüidade o álamo da sapiência
Phobos! De dedos longos e mortificadores
Aguarda sobre a terra bravuras travestidas
Sorve com os olhos o sonho dos amadores
Apenas sementes de ilusões combalidas
A última réstia cintila sobre o moribundo
De Longe! De perto! A quintessência da finitude
Semeada por vingança o conduz a outro mundo
Calado para sempre diga adeus à juventude
Terminada a declamação, Ávila se calou e sentou sobre a porção de folhas que cobria o solo. Limitou-se a tapar a própria boca com a mão direita enquanto ouvia Souza gritar e xingar. Levantou-se e, de costas para Gilberto, caminhou ao encontro da machadinha. A levou para perto de Souza e o golpeou três vezes, decepando a perna esquerda. Mais uma vez retardou a hemorragia com pólvora e fósforo. Pegou o bacamarte e disparou dois tiros no abdômen de Gilberto. Deitou o inimigo ao lado de uma figueira e, com uma navalha, guardada no bolso da jaqueta, começou a extrair a pele do peito. Enquanto o fazia, lhe contou: “Gilberto, você sabia que em períodos remotos as capas dos livros eram feitas de couro humano? Faziam isso pelo simples fato de serem mais duráveis e impermeáveis”.
Souza não falou mais. Resignou-se – percebeu que a prostração seria inevitável. Já era mais de 19h quando Daniel usou uma corda para amarrar Gilberto com a cabeça para baixo – a dois metros do chão. Balançou o corpo de Souza e usou uma zarabatana para atirar pequenas setas envenenadas com seiva. Vinte minutos mais tarde, pegou um fundíbulo e arremessou inúmeras pedrinhas na boca de Gilberto. Aproximou-se e viu sete dentes quebrados. Às 19h30, desceu Gilberto já desmaiado e o arrastou até a ferrovia, onde o maquinista se encarregaria do resto. Ficou observando de longe, esperando o trem se aproximar. Sem piscar, viu o corpo de Gilberto ser estraçalhado sobre os trilhos. De longe, avistou vestígios da roupa de Souza; do corpo restou pouco. Com voz vivificada, Daniel observou a paisagem e declamou:
Saiba! Seu sangue há de purificar esse caminho
Liquefeito que desvanece o pesadelo de um menino.
Nos meandros da injustiça ganha asas o passarinho.
Renascido! Enaltece o céu sob capitólio cristalino.
Agora! O que há por vir no deliberar de um despertar?
Seria o aroma das folhas que me compete uma visita?
Os olhos da vicissitude me condenando a regurgitar?
O preço da vingança que me transforma em eremita?
Ávila abraçou uma árvore e esfregou o sangue de suas mãos pelo tronco, fazendo movimentos de cima para baixo. “É minha única testemunha. Para ti, deixo a prova do meu feito nesta floresta, suntuosa natureza. Transmito-lhe a essência de um infausto. Conserve-a para que dos homens funestos jamais se esqueça”. Daniel tirou as mãos da figueira, correu até onde abandonou o inimigo e colocou um pedaço de papel preso ao trilho; uma carta de despedida com a assinatura de Gilberto declarando-se inapto a conviver com seres da mesma espécie. Ninguém reconheceria que o texto era de Daniel. As cartas de Souza eram datilografadas em uma máquina Olivetti Studio 44 – não gostava de escrever e apenas as assinava. Alguns dias antes do homicídio, Ávila comprou uma máquina do mesmo modelo. Teve a ajuda de um amigo carteiro que entregou algumas encomendas na residência de Orlando Borba Costa; conseguiu a assinatura de Souza em um papel em branco, camuflado por um envelope dos Correios.
Prelúdio do renascimento
Ávila passou pela Ferrovia do Colono diariamente ao longo de 11 dias, informado pelo vigia do Parque das Figueiras Flávio Augusto de Oliveira que Gilberto sempre era visto naquela região no período da tarde. Casualmente, o encontrou apenas no dia 3 de junho. Ninguém suspeitou que Daniel estivesse envolvido no crime. Além da população não comentar mais sobre o assassinato dos três garotos, houve um sentimento coletivo de complacência e cumplicidade para com o anônimo verdugo de Souza. O delegado Rogério Basílio Prestes descartou a realização de perícia na cena do crime; informaram à família que Gilberto praticou suicídio. No dia 4, apenas Palmira, Orlando e um padre, de outra cidade, participaram do velório e da despedida no cemitério. O enterro foi realizado com o caixão fechado. Mesmo assim, de todos os membros, apenas os olhos não foram encontrados.
Até o final do mês de junho, uma neblina que pairou sobre Aretema ao longo de 35 dias desapareceu. O céu estava tão claro que parecia desenhado por um artífice divino. No Vale do Cedro, via-se o movimento sincronizado das folhas, tão sublime que levou alguns pioneiros às lágrimas. Mas nada despertou mais curiosidade na população que um fato nunca antes presenciado. Do alto da Serra das Brumárias, a corrente de ar ao leste trazia o intenso aroma das folhas de eucalipto, extasiando os moradores que, a olhos fechados, inalavam incondicionalmente a fragrância. No início de julho, ninguém mais vivia na serra. Os Nitberg foram os últimos moradores. Com a morte de Gilberto, um súbito conforto espiritual os levou a se tornarem ativistas do Greenpeace. Em Aretema comentou-se muito que sem residência fixa, passaram a viver pelos oceanos, na tentativa de proteger as baleias de caçadores soviéticos, islandeses e noruegueses.
Tudo estava em perfeita harmonia, tanto que turistas voltaram a freqüentar a cidade após sete anos. Aretema ainda estava despreparada para atendê-los; os bondinhos foram desativados cinco anos antes. O prefeito, preocupado em desperdiçar a melhor oportunidade turística em décadas, contratou uma empresa para realizar a manutenção. Cinco dias depois, os dois bondinhos entraram em operação: um ligando Aretema a Serra das Brumárias, o outro ao Vale do Cedro. A novidade foi satisfatória para quem quis agregar mais renda. Para as crianças e os idosos também – agraciados com novas formas de entretenimento.
Somnus Et Finis
Em uma propriedade a dez quilômetros de Aretema um homem continuava inapto a observar a evolução da cidade onde nasceu; era Daniel Ávila. Entrou em estado catatônico no dia 4, e os pais, que desconheciam o motivo, tentaram levá-lo a uma psicóloga e a um psiquiatra. A insistência foi em vão. Daniel repelia ou ignorava qualquer presença humana enquanto balbuciava neologismos. Seus olhos estavam sempre marejados, mantendo seus lábios e queixo bem úmidos. Ávila se alimentava de modo esporádico – uma ou duas vezes a cada três dias. Ingeria quantia insignificante de alimentos, estimulando sua mãe a comentar que nem mesmo um canarinho se contentaria com tão pouco. Rosa e João Carlos não passavam mais de cinco minutos no quarto, pois tão logo o filho era consumido por incontrolável mal-estar; efeito de qualquer presença humana. Nunca souberam que o seu estado de misantropia e ostracismo tinha relação com a morte de Gilberto.
De madrugada, quando ninguém se dirigia ao quarto de Ávila, ele saltava da cama e arrastava os móveis procurando os olhos de Souza. Acreditava que estava sendo observado por ele e só conseguiria dormir quando os encontrasse. Passava horas vasculhando o quarto, mas nunca achava nada. Desolado, debatia-se contra o chão e sentia ingente dor no palato; como se alguém lhe alfinetasse o céu da boca. A esquizofrenia de Daniel piorou drasticamente no dia 9, quando, com unhas grandes, tentou furar os próprios olhos. Em seu indistinto estado psicológico e emocional, seria o único jeito de não ser incomodado por Souza que o espreitava com olhos intumescidos. Por recomendações médicas, Rosa e João Carlos decidiram internar o filho no Instituto Dom João VI.
No dia 11, Daniel Ávila não se levantou da cama, ficou olhando atentamente para o teto. O barulho dos internos jogando futebol suíço ao lado não o incomodou, na verdade, nem os ouviu. A única coisa que lhe consumiu a atenção naquela manhã foi uma pontada no ouvido direito. Quando colocou a mão na orelha, com a simples intenção de coçá-la, Daniel ouviu um som disforme ganhando intensidade descomunal. Não reconheceu a sonoridade e a dor o estimulou a agir. Esfregou as orelhas com força e logo as sentiu dormentes. Acalmou-se com o repentino desaparecimento da dor. Começou a rir consigo mesmo e fixou o olhar em direção a fresta da porta. Ávila teve um calafrio ao ver os olhos castanhos de Souza ao lado da réstia. Começou a balbuciar e sentiu-se asfixiado ao ser tomado por lembranças. Daniel colocou a cabeça debaixo do travesseiro e, pela primeira vez depois de semanas, dormiu profundamente. Quando um agente psiquiátrico foi chamá-lo para o banho de sol, Ávila manteve-se calado; o sujeito entrou e ergueu o travesseiro. Encontrou o rosto de Daniel rubro como nunca, banhado em sangue e com um furo na têmpora. Já estava sem vida e entre seus dedos pálidos uma glock 17, calibre de nove milímetros, faltando cinco cartuchos.
No dia 3 de agosto, três crianças brincavam de se esconder no Parque das Figueiras; uma delas encontrou os olhos castanhos de Gilberto enroscados no galho de uma figueira. Já no final da década de 1970, alguns moradores que viviam próximo ao parque comentaram que no outono o vento oriundo do Vale do Cedro, que assoprava até eles, era acompanhado por uma voz antropomorfa.